Uma onda conservadora parece reunir a maioria dos protestantes no Brasil, boa parte dos católicos e até pessoas sem confissão religiosa. É raro ver uma enorme massa de brasileiros unida em torno de algum ponto comum. Lembro-me da Copa de 1970, das “Diretas Já” e das corridas do Ayrton Senna. Alguns acham que foi o Bolsonaro quem criou esta onda, mas é provável que a onda tenha criado o Bolsonaro.
Alguns interpretam que esse alinhamento evangélico à direita é resultado da desinformação dos fiéis ou promovido por líderes midiáticos com interesses pessoais. Entretanto, não é verdade que os menos informados sejam alinhados à direita, nem que os evangélicos sejam menos informados que a média da população. Quanto ao jogo de interesses, os corruptos sempre acharão políticos interessados em negociar, seja qual for a ideologia política no poder. Minha suspeita é que esta onda tenha um motor mais profundo, relacionado à doutrina e ética protestantes.
Há 120 anos, Max Weber (1864-1920) escreveu A ética protestante e o espírito do capitalismo. Neste livro, Weber analisou a influência da diligência protestante na prosperidade econômica, resultado de trabalho árduo para gerar receitas e responsabilidade nos gastos. À luz desta diligência, é possível achar parte da verdadeira razão ao considerarmos os dois últimos grandes programas do Governo Federal para auxílio social, um proposto pela esquerda e outro pela direita. Diferente do Auxílio Brasil, atual programa da direita, o Bolsa Família era mais descentralizado e invasivo, visto sua interrupção quando o beneficiário conseguia um emprego, constituía uma empresa ou deixava os filhos fora da escola, algo fiscalizado pelos governos locais. O auxílio Brasil, por outro lado, não vincula a ajuda aos pais terem que concordar e levar os filhos para a escola, não delega poderes de supervisão aos governos locais e, ainda, estimula a iniciativa individual ao manter o auxílio mesmo com o início de renda própria.
Embora parte do discurso evangélico brasileiro macule o valor do esforço, ao pregar uma religião-mágica, o protestante médio defende a busca da autonomia econômica pelo esforço, ou seja, pelos méritos. Fazer o bem é algo a ser desenvolvido, aprendido e procurado. Parece que uma mudança de mentalidade está em curso no Brasil. Para a ética protestante, aceitar ajuda é quase sempre humilhante. Feliz ou infelizmente, para muitos brasileiros, ser ajudado ainda não é uma experiência de sofrimento, mas de comemoração.
Esse protestante também teme o empoderamento do Estado, especialmente nos assuntos de família e fé. Ele está disposto a sacrifícios para defender a liberdade pessoal, mesmo que isso implique em uma demora maior para a solução das emergências. O direito de cada adulto tomar decisões é inegociável. “Eu não posso decidir por você” diz um jargão da soteriologia protestante, em contraste com os “padrinhos” da soteriologia católica (Se isto vale para a salvação, deve servir também para o voto).
O paradoxo é que a ênfase protestante no poder e na liberdade do indivíduo é, talvez, a primeira responsável pela produção do pensamento de esquerda, ao garantir, e até estimular, que os indivíduos possam ser diferentes. Se a minoria precisa ser respeitada, quanto respeito ela deve demonstrar para com a maioria? E não é legítimo o medo de extinção existente na direita, que a leva a certos exageros, causado pela percepção de que onde há hegemonia da esquerda a direita deixa de existir?
A conclusão sobre o fundamento desta onda é que, embora a sua identidade esteja em formação, o protestante brasileiro identifica-se mais facilmente com a direita por achar que ela estimula o esforço pessoal e é menos intervencionista. Entendendo assim, se os protestantes simpáticos à esquerda continuarão indignados com a maioria de seus irmãos, pelo menos podem compreendê-los melhor.
A realidade deste isolamento foi ilustrada no mês que antecedeu as eleições polarizadas entre esquerda e direita no Brasil, em 2022. O presidente de uma convenção batista regional, ao dar uma palavra explícita de apoio ao candidato da esquerda num evento do partido, deixou de esclarecer que falava como indivíduo e não como representante da comunidade de fé. Isto desencadeou uma enorme pressão de outros líderes, aplacada somente com sua renúncia ao cargo. Em 2010, outro líder batista, então de peso nacional, fez uma exposição contra a esquerda. Nesse caso, o líder também recebeu críticas severas, mas foram compensadas por manifestações de apoio ainda maiores. De qualquer modo, estes exemplos confirmam ser mais difícil identificar-se com a esquerda no meio evangélico, uma vez que, imagino, as outras denominações não agiriam de modo muito diferente neste particular. Em outras palavras, se você defende a esquerda, você está com a minoria. Os dois interferiram na política, algo questionado pela doutrina de separação entre Igreja e Estado, mas o líder da esquerda o fez contra a maioria, e caiu.
Embora minoria, os protestantes que se identificam com a esquerda não podem ser desprezados, por conta do mandamento bíblico e do princípio democrático adotado pelas igrejas, notadamente as batistas.
Talvez a instrução apostólica mais difícil de ser aceita e observada seja a da harmonia: “Tende um só discurso, um só pensamento, um só julgamento” (1 Coríntios 1.10). Aceitar esta ordem já é um desafio, outra coisa é praticá-la. Se sujeitar-se, democraticamente, ao pensamento da maioria é difícil, muito mais será “ter um mesmo coração”.
O espírito da maioria deve sempre ser acatado pela minoria? E se a maioria estiver errada? Os que defendem a esquerda argumentam que o fazem por um ímpeto profético, especialmente em defesa do método de ajuda aos mais fracos. Sim, é uma questão de qual método é melhor. Toda a comunidade está unida na assistência aos pobres. A acusação de que os da direita não distribuem os lucros do capitalismo não se sustenta porque os da esquerda também não abrem mão da vida confortável que têm. O debate é, portanto, se o Estado deve ser mais ou menos intervencionista. Por outro lado, os da direita argumentam que não estão defendendo apenas métodos econômicos, mas bandeiras teológicas e princípios históricos, como proteção da vida desde o ventre e liberdade de expressão.
E quais poderiam ser os pontos de convergência? O que podem celebrar juntos? Onde cada parte precisa ceder? Primeiramente, ambos podem aceitar e exaltar o imperativo de serem unidos em Cristo. “Sede conformes” nunca foi uma sugestão e, sim, uma ordem. Isto impediria as palavras agressivas e excluidoras e faria reinar um espírito de humildade, uma vez que todos aceitam a soberania absoluta do Senhor e confiam que os céus governam a Terra. Em segundo lugar, parece que os da esquerda podem se esforçar para defender teses que são preciosas para a maioria, inclusive para eles mesmos, como a defesa da liberdade individual e da não intervenção do Estado em assuntos de família e fé. Mostrar que em valores do Reino eles são igualmente radicais seria um gesto importante. Por sua vez, os da direita que misturam Igreja com política partidária podem deixar de fazê-lo. Provavelmente, o que mais ofende e afasta, é ver um líder pastoral usando sua influência para defender um candidato. Como foi dito num vídeo que viralizou na Internet: “Saudade do tempo em que o convite da Igreja era para aceitar a Jesus”.
Por fim, o zelo e o esforço de todos atendem ao princípio de separação entre Igreja e Estado e à regra de ouro do Evangelho: “Assim, em tudo, façam aos outros o que vocês querem que eles lhes façam; pois esta é a Lei e os Profetas” (Mateus 7:12)
Juracy Bahia
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- O que precisa ser modificado no texto para ser compartilhado em sua rede social?
- O que o Senhor requer de você neste momento político pelo qual passa o Brasil e a Igreja?
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Reflexão oportuna, bem elaborado e com ótimo conteúdo para este tempo de polarização as vezes irracional.
Parabens amigo.
Parabéns Pastor Juraci por essa proveitosa reflexão.
Sobre a onda citada na introdução,penso que o Bolsonaro foi um surfista de sorte,e surfou uma onda que estava a muito tempo silenciada,o problema é manter o equilíbrio até completar a manobra.
_ Quanto aos programas propostos por direita ou esquerda,o que se percebe é o interesse de ambos,no que se espera do povo.
_ Quanto ao respeito entre ambos,sejam maioria ou minoria,deveriam dar lugar ao instituto da conversa, que se perdeu na polarização atual,onde se discute pessoas e não ideias.
Gerando uma sociedade militante e disassociada dos verdadeiros valores, que respeitam a igualdade de direitos.
Enfim não se trata de A Ou B,se trata de indivíduos, cristãos,possuidores de direitos e deveres para com a sociedade mais principalmente para com Deus.Por isso as decisões em maioria ou minoria antes de serem acatadas ,devem ser discutidas,com auto crítica construtiva quando assim houver necessidade,e então devem ser respeitadas, não vejo como utopia vejo como bom senso.
Estado e igreja devem cumprir sua missão para o que foram constituídos,ambos são importantes na visão de Deus.
Se tiver que haver intervenção,somente poderá vir de Deus.
_ Insisto, não se trata de direita ou esquerda,se trata de como lidaremos uns com os outros no que tange a vontade de Deus.
_ Como disse o Apóstolo Pedro ao sinédrio e ao sumo sacerdote,depois de uma proibição de pregação da palavra:
” É necessário que primeiro obedeçamos a Deus,depois as autoridades humanas.”Atos 5:29.
Muito obrigado Pastor Juraci Bahia por nos fazer refletir sobre o atual momento.
Convivo com uma pessoa de esquerda, por quem eu daria minha vida,ela tinha 17 anos quando entrou para a UERJ,os primeiros dois anos foram muito difíceis,seu conservadorismo e crenças dificultaram muito sua vida,num contexto onde professores e tutores liberais,contestavam o ser diferente.
Aconselhei a ela, que olhasse as dificuldades vendo nelas sempre uma possibilidade.
Que a forma dura que a tratavam ,que a levava ao choro muitas noites,nada mais era do que estar sendo forjada para dias melhores.Ela não perdeu sua fé,mais percebeu que se caminhasse com eles em sua forma de pensar,as coisas poderiam mudar.
E foi o que aconteceu,seus objetivos foram alcançados,no entanto sem perceber perdeu_ se o censo crítico da dúvida, de ouvir o contraditório de dar lugar a razão e não somente a emoção.Continuo dando minha vida se necessário por minha filha,E a Amo muito ,mesmo não concordando com sua ideologia,somos amigos e o instintuto da conversa impera entre nós,e sua fé em Deus continua sendo sua âncora de equilíbrio.
O parágrafo abaixo foi acrescentado ao post hoje, 14/10/22:
O paradoxo é que a ênfase protestante no poder e na liberdade do indivíduo é, talvez, a primeira responsável pela produção do pensamento de esquerda, ao garantir, e até estimular, que indivíduos possam ser diferentes. A minoria precisa ser respeitada. Mas, quanto respeito ela deve demonstrar para com a maioria? E não é legítimo o medo de extinção existente na direita, que a leva a certos exageros, causado pela percepção de que onde há hegemonia da esquerda a direita deixa de existir?
Quanta lucidez!
Obrigada, pastor, por nos trazer à realidade à luz da palavra.
Excelente texto! Como sempre bem equilibrado e ponderado.
O protestante médio acredita na tal meritocracia como virtude neste mundo criado e sustentado pelo Deus Capital? Tô fora!
Sim, quando eu faço o que o meu filho, aluno ou vizinho pode fazer, eu não estou ajudando. Muitas vezes, estou atrapalhando. Algo semelhante ocorre quando eu digo que se ele orar, ele passará no vestibular. Não, para passar no vestibular, ele precisa é de estudar. (Claro que não estamos a falar de salvação eterna. Esta, recebemos gratuitamente, ou nunca a teremos, porque nada podemos fazer para merecê-la). Vamos reler o parágrafo: “Embora parte do discurso evangélico brasileiro macule o valor do esforço, ao pregar uma religião-mágica, o protestante médio defende a busca da autonomia econômica pelo esforço, ou seja, pelos méritos. Fazer o bem é algo a ser desenvolvido, aprendido e procurado. Isso não parecia muito simpático para a sociedade brasileira até pouco tempo atrás. Parece que uma mudança de mentalidade está em curso no Brasil. Para a ética protestante, aceitar ajuda é quase sempre humilhante. Felizmente ou infelizmente, para muitos brasileiros, ser ajudado ainda não é uma experiência de sofrimento, mas de comemoração”. Obrigado por seu comentário. Este tema é bastante desenvolvido no primeiro capítulo de A boa parte: O esforço.
Essa é a realidade de um tempo de polarização política que vem permeando o mundo atual e no caso específico do Brasil o que podemos dizer?
Todos têm suas razões e seus argumentos para fazer apologia a uma ou outra posição, porém o evangelho deveria ser o contraponto de uma vida pautada pela exclusão de pessoas por apenas pensar diferente, o que entendo é que não há respeito para quem pensa ou enxerga os discursos em outra visão
O que fazer? É utopia pensar que há possibilidade de unidade
Na verdade, a Igreja é um ambiente onde diferentes cultuam e servem juntos. Na minha Igreja, por exemplo, amigos que votam na esquerda e na direita dão boas gargalhadas juntos. Claro que não são todos assim e, mesmo na minha Igreja, há alguns que ainda não aprenderam ou não decidiram obedecer ao mandamento do Senhor, de terem um só coração. Mas, o padrão está colocado. Basta que o observemos.