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Não somente os presidiários vivem presos. Muitas vezes vivemos em situação de prisão por conta de guerras, pandemias, perseguição, luto e, a mais comum, doenças ou precaução contra elas. Algumas pessoas escolhem, deliberadamente, uma vida de reclusão. Na fazenda, ficávamos isolados porque uma ponte caía; aqui na cidade, ficamos em home office por conta de um vírus. Filósofos argumentam que a vocação da alma é viver presa ao corpo.
Há um lado negativo do isolamento. Precisamos, entretanto, perceber o seu valor. O próprio descanso é, muitas vezes, uma experiência de isolamento, como o sono, a folga, o sabático. O isolamento é indispensável para o desabrochar da vida, como o silêncio o é para a música. Não é de se estranhar, portanto, que muitos rituais de iniciação incluam situações de isolamento.
Situações de prisão fazem parte da história humana, desde Adão, que se escondeu de Deus, e Caim, que foi expulso do convívio familiar. Jacó encontrou-se com Deus quando fugia do irmão; José, antes de se tornar o governador do Egito, estava ora numa cisterna, ora numa cadeia; Moisés passou 40 anos no deserto para, então, ver a sarça ardente; Elias foi encontrado por Deus numa caverna; Davi vivia fugindo dos irmãos ou de Saul, antes de se tornar o rei “segundo o coração de Deus”; e por aí vai. Jesus Cristo, ainda criança, teve que aprender a fugir e, quando adulto, regularmente escolhia a reclusão para orar. Não foi diferente com os primeiros cristãos. João, por exemplo, viveu exilado na Ilha de Patmos, e escreveu o Apocalipse.
O apóstolo Paulo, uma vez convertido, teve a vida transformada, de alguém que encarcerava as pessoas para alguém que passou a maior parte da vida em situação de prisão, muitas vezes, literalmente. Além de doenças intermináveis, assumiu sua jornada de missionário, que, por si, é uma vocação de alguma reclusão. Nos primeiros três anos, ficou na Arábia (Gálatas 1.17). Foi preso em Filipos, em Éfeso, em Jerusalém e, finalmente, em Roma, onde terminou a vida em prisão domiciliar.
Dietrich Bonhoeffer, um pastor alemão que morreu na cadeia dos nazistas por conta de suas pregações, testemunhou: “No mais, leio e escrevo tanto quanto me é possível, e me conto por satisfeito de não ter sentido neste período de mais de 5 meses um só momento de tédio. O tempo sempre está preenchido, apesar de haver no fundo, desde a manhã até a noite, a espera” (Resistência e Submissão, Sinodal, p. 57). Bonhoeffer ficava escandalizado com a ideia de esquecer as lições aprendidas no isolamento e questionava se esta “memória perdida” não seria a causa para a ruína de todos, do amor, do matrimônio, da amizade e da lealdade (p. 106). Para ele, perdemos tempo apenas quando “não obtemos experiências, não aprendemos, não realizamos, nem desfrutamos nem sofremos nada” (p. 15).
O isolamento é precioso para a descoberta e o desenvolvimento de nossa identidade. Bem aproveitado, ele pode ajudar a responder “quem eu sou?”, e isso não tem preço. Posso desenvolver o meu caráter, receber treinamento e abraçar novos desafios. Enfim, não é tempo perdido se aprendo a viver e a servir melhor, se saio da caverna uma pessoa melhor, mais humilde, mais humano e cresço na arte de saber esperar. Em referência ao seu Evangelho, Paulo dizia: “Não o recebi de pessoa alguma nem me foi ele ensinado” (Gálatas 1:12), ou seja, ele o recebeu na leitura, reflexão e oração.
Há vida no isolamento, se estou executando a minha missão de vida. Além dessa vocação de eterno adorador, cada um está neste mundo com um propósito, normalmente relacionado ao serviço. Posso ser forçado a fazer mil ajustes na rota, mas devo persistir na realização do que entendo ser uma ordem divina para mim. No caso dos cristãos, a ordem é explícita: cooperar para que o Evangelho seja anunciado a todos. Os discípulos sentem que, se estão obedecendo, tudo está bem.
Há vida no isolamento, se eu mantenho a adoração congregacional. A luta do Diabo em isolar as pessoas é, basicamente, uma tentativa de impedir a proclamação do Evangelho e o culto a Deus. Os discípulos sentem-se desafiados a não permitir que isso ocorra. Se não podem adorar no conforto de um templo, irão adorar onde puderem reunir dois ou três. Atos 16:25 registra: “Por volta da meia-noite, Paulo e Silas estavam orando e cantando hinos a Deus; os outros presos os ouviam”. Observe que eles tinham sido severamente açoitados e tinham os pés presos num tronco.
Por fim, há vida no isolamento quando percebemos a preciosidade da amizade de alguém que está, ou age como se estivesse, conosco em nossa “prisão”. O Senhor da história valorizou, como ninguém, essa amizade desenvolvida no isolamento, e fez dela o assunto para seu discurso final, quando este mundo de isolamentos chegar ao fim: “Quando preso ou doente, você esteve comigo. Agora, venha estar comigo nos céus”. Portanto, há vida no isolamento, se a boa parte está garantida depois dele.
Juracy Bahia